sexta-feira, 19 de junho de 2009

Morri, e eis aqui, considerações póstumas

E os vermes já comem a minha carne fria e sem vida. Meu coração ainda dói, e muito, e solta fel. Mas daqui a pouco, eles o comerão também, e essa melodia fúnebre, tocada debaixo desse céu azulado de outono, já não chegará aos meus ouvidos...

Vou falar com sinceridade. Ignorarei aqui a minha mediocridade, a minha insignificância. Hoje eu posso, ninguém pode me acusar. Defunta pode tudo.

Descobri ontem uma das faces da morte. Descobri que a morte pode ser muito mais que o stop do coração e cérebro. A dona da foice, tem uma face que se oculta no sentimento. E essa face foi a mim apresentada.

Senti que a morte chega lentamente. Assim como em um ataque cardíaco, os sintomas são os mesmos. Fui invadida por um sentimento de pavor, medo. De repente comecei a tremer e o meu corpo já não obedecia meu comando. Me faltou o ar, o sangue não chega ao cérebro, o coração bate acelerado, descompassado. Todo meu corpo em choque, em dormência, e comecei a morrer lentamente de inanição.

Hoje, meu o corpo já mostra visivelmente as marcas cadavéricas. Pele amarela, fria, olheiras, muita palidez, semblante longínquo, onde nota-se somente traços que um dia vivi, e amei e me decepcionei e sofri, e sofri e sofri. Então resolvi te contar como é morrer, escrevendo essa memória póstuma, como meu amigo Brás Cubas. Certa vez ele disse: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Também não tive. E agora não posso ter. E a minha miséria jaz comigo. Não afetará ninguém.

Daqui, de lonnnnnnnge, desse lugar silencioso, frio, afetado, que cheira a sepulcro, sinto na boca o fel do abandono. Da minha lápide eu o observo, cantando, assoviando no chuveiro e nem mesmo se lamenta pela tal viuvez. Mas é que seu coração sempre teve dona, a mim ele foi dado somente por curto empréstimo.

Ai, sinto os vermes que já começam a comer, lentamente meu corpo e faz cócegas e dói, mas quero que eles cheguem logo ao meu coração e o coma, pois mesmo aqui, morta, sinto dor, uma dor cega, que me invade até os fios de cabelo. E como é estranho ficar aqui, sem poder fazer nada, sem contar a vocês o futuro. Não vejo muito, mas consigo enxergar algumas coisas.

Vejo meu amor, meu carrasco, minha Dona Morte, vejo mais uma vez seu sofrimento. As suas risadas, seu bom humor, suas piadas, de novo não perduraram por longo tempo. Você está lá, sentando, bebendo mais que nunca, apavorado, desconfiado, com medo de se envolver, com medo de confiar novamente. Acho que você também está morto. Morto não, talvez cego, e surdo e estagnado. Se você fosse ser muito feliz com sua escolha, eu sinceramente te daria meu sangue. Mas não, aqui eu vejo, será tudo como antes, mais uma vez.

Mas não posso fazer mais nada. Fui morta, você ajudou a me matar e daqui, do meu túmulo eu só vejo, e prevejo, mas estou inerte, os bichos me comem, tudo ainda dói. Não amor, agora não sou mais só sua, sou também dos vermes, e agora já não valho nada. Sou carcaça, inerte, imóvel e fraca.

Quando se sofre um ataque muito forte do coração, de acordo com a sua vontade de viver, você consegue fazer algumas escolhas. Eu tive duas. Viver ou morrer. Porém, se escolhesse a vida, eu iria vegetar. Então eu veria você, feliz, sofrer, e nem sequer eu poderia mexer. Então escolhi a morte. Ainda vou te ver, e sofrer, e te ver feliz, e te admirar, e te odiar, e te ver sofrer ainda mais. Porém foi tirado de mim o poder de fazer algo, mas quem sabe, agora, morta, Deus me ouça, e eu peço a Ele pra cuidar bem de você, como eu queria cuidar, te tomar nos braços, te dar o mundo. E mesmo magoada, como eu ainda te amo...

Não fui jornalista, não fui mulher, não fui sua esposa e nem a mãe dos seus filhos. Fui uma fraude e já não há nada para ser, lembro disso olhando o azul roxeado desse tecido aveludado que envolve meu caixão. As flores ainda cheiram, e como é ruim esse cheiro, lembra solidão. Mas isso são reclamações de uma defunta que, daqui a pouco, será pó. Estou morta. E é isso. Não adianta me comportar como se ainda vivesse. O sofrimento já não existe, o amor já não existe. Só morte. Morte, morte e morte. Entre vegetar e morrer, eu escolhi a morte, pois sinceramente nesse momento a “Morte Me Cai Bem”.


“Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo. Porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar- se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos: não há platéia. O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

:(]

2 comentários:

Paulo Lessa Silva disse...

"às vezes, na pressa de encontrar a gente não vê. o erro está em enxergar nas aparências só o que há em um momento. quem ama consegue enxergar o que o outro ainda não é, o avesso. compreender alguém e amá-lo só é possível quando a gente entra no avesso e enxerga além do que os olhos podem revelar, vê o que ainda está oculto"

Estou na espera e busco um dia me reencontrar primeiro para não sofrer o pior. Tenho uma frase que levo comigo:
"Tenha paciência, Deus ainda não me terminou, estou em etna feitura"
Paulinho

PITTY disse...

Linda. Você simplismente colocou seu coração nessa postagem.Sei que tudo que está ai é verdade e isso me doi muito.Mais não se preocupe linda. Toda AÇÂO tem uma REAÇÂO e pode ter certeza que a "MORTE" terá que arcar com a reação.
Logo vai passar.....
Bjs!!!